10 de abr. de 2009

The Image - Kenneth Boulding

Transcrevo aqui a tradução da introdução deste livro belissímo que descreve de forma muita clara a subjetvidade da imagem, da mente humana e do conhecimento.

Enquanto permaneço sentado em minha escrivaninha, sei onde me encontro. Vejo diante de mim uma janela; além dela algumas árvores; mais além os telhados vermelhos do campus da Universidade de Stanford; depois as árvores e os topos dos telhados que distinguem a cidade de Palo Alto; depois deles os montes dourados da cordilheira Hamilton. Eu sei, porém, mais do que eu vejo. Atrás de mim, apesar de não estar olhando nessa direção, eu sei que existe uma janela, e diante dela o pequeno campus do Centro de Estudos Avançados das Ciências do Comportamento; depois dele, a serra costeira; depois dela o Oceano Pacífico. Olhando de novo a minha frente, eu sei que depois das montanhas que delimitam meu horizonte atual existe um amplo vale; depois dele uma cadeia de montanhas ainda mais alta; depois delas outras montanhas, cadeia após cadeia, até chegar às Montanhas Rochosas; além delas as Grandes Planícies e o Mississipi; depois os montes Alleghenies; depois a costa leste; depois o Oceano Atlântico; depois a Europa ; depois a Ásia. Eu sei, ainda mais, que se avançar cada vez mais vou voltar ao lugar onde me encontro agora. Em outras palavras, tenho uma imagem da terra redonda. Eu a vejo como um globo. Alguns detalhes são meio embaçados. Não tenho certeza, por exemplo, se Tanganyika fica ao norte ou ao sul de Nyasaland. Provavelmente não seria capaz de desenhar um bom mapa da Indonésia mas tenho uma idéia razoável sobre onde tudo se localiza na face desse globo. Olhando ainda mais adiante, eu visualizo o globo como um grãozinho circulando ao redor de uma estrela brilhante que é o sol, na companhia de muitos outros grãozinhos parecidos, os planetas. Olhando mais longe ainda, vejo nossa estrela o sol como um membro, junto com milhões e milhões de outros, na Galáxia. E olhando ainda mais longe, visualizo a Galáxia como uma entre milhões e milhões de outras no universo.
Eu não apenas me localizo no espaço, eu me localizo também no tempo. Sei que vim para a Califórnia há cerca de um ano, e que partirei em cerca de três semanas. Sei que morei em vários lugares diferentes em tempos diferentes. Sei que há cerca de dez anos uma grande guerra chegou ao fim e que há uns quarenta anos atrás outra grande guerra terminou. Algumas datas são significativas: 1776, 1620, 1066. Tenho uma imagem em minha mente do processo de formação da terra, da longa história do tempo geológico, da breve história da humanidade. As grandes civilizações do passado passam diante da minha tela mental. Muitas das imagens são vagas, mas a Grécia vem depois de Creta, Roma vem depois da Assíria.
Eu não tenho apenas um lugar no espaço e no tempo, eu me coloco num campo de relações pessoais. Eu não apenas sei onde e quando eu estou, eu sei até certo ponto quem eu sou. Eu sou um professor em uma grande universidade pública. Isso quer dizer que em Setembro eu irei para uma sala de aula e espero encontrar alguns alunos nela e começarei a falar para eles, e ninguém vai se surpreender com isso. Eu espero, o que é talvez ainda mais agradável, que os cheques do meu salário chegarão regularmente da universidade. Eu espero que quando abrir minha boca em certas ocasiões as pessoas irão ouvir. Eu sei, além disso, que eu sou um marido e um pai, que exitem pessoas que reagirão a mim com afeto e aos quais eu reagirei de modo semelhante. Sei também que tenho amigos, que existem casas aqui, ali e em toda parte, às quais eu posso ir e onde serei bem-vindo e reconhecido e recebido como hóspede. Eu pertenço a várias associações. Existem lugares onde eu vou, e será reconhecido que se espera que eu me comporte de certa maneira. Eu posso me sentar para adorar, posso fazer um discurso, posso ouvir um concerto, posso fazer várias espécies de coisas.
Eu não só estou localizado no espaço, no tempo e em relacionamentos pessoais, eu também estou localizado no mundo da natureza, num mundo de como as coisas funcionam. Sei que quando entro no meu carro existem certas coisas que devo fazer para dar a partida; algumas coisas que devo fazer para sair do estacionamento; algumas coisas que devo fazer para dirigir até minha casa. Sei que se pular de um lugar alto provavelmente vou me machucar. Sei que existem algumas coisas que não são boas para eu comer ou beber. Sei que certas precauções são recomendáveis para manter uma boa saúde. Sei que se me inclinar demais para trás em minha cadeira, enquanto estou aqui sentado diante de minha escrivaninha, provavelmente levarei um tombo. Vivo, em outras palavras, em um mundo de relações razoavelmente estáveis, um mundo de "se" e "então", de "se eu fizer isto, então aquilo vai acontecer."
Finalmente, estou localizado no meio de um mundo de percepções e emoções sutis. Às vezes estou eufórico, às vezes um pouco deprimido, às vezes feliz, às vezes triste, às vezes inspirado, às vezes pedante. Estou aberto a percepções sutis de uma presença além do mundo do espaço, do tempo e dos sentidos.
Tudo aquilo de que venho falando até agora é conhecimento. Conhecimento talvez não seja uma boa palavra para isso. Talvez fosse melhor falar de minha Imagem do mundo. Conhecimento tem uma implicação de validade, de verdade. Eu estou falando daquilo que eu acredito ser verdade, meu conhecimento subjetivo. É essa Imagem que geralmente governa meu comportamento. Em cerca de uma hora eu me levantarei, sairei de meu esscritório, irei para o carro, seguirei até minha casa, brincarei com as crianças, comerei o jantar, talvez leia um livro, irei para a cama. Posso predizer esse comportamento com um precisão razoável por causa do conhecimento que tenho: o conhecimento de que tenho uma casa não muito distante, à qual estou acostumado a ir. É claro que a previsão pode não se realizar. Pode haver um terremoto, posso sofrer um acidente com o carro no caminho, ao chegar em casa posso descobrir que minha família saiu inesperadamente. Centenas de coisas podem acontecer. Quando cada uma dessas coisas acontece, no entanto, ela altera a estrutura do meu conhecimento ou da minha imagem. E quando a minha imagem muda, eu me comporto de acordo com isso. A primeira tese deste trabalho, portanto, é que o comportamento depende da imagem.
O que, então, determina a imagem? Esta é a questão central deste trabalho. Não é uma questão que ele poderá responder. Mesmo assim, as respostas que eu puder oferecer serão fundamentais para a compreensão de como a vida e a sociedade funcionam realmente. Uma coisa é clara. A imagem é construída como um resultado de todas as experiências passadas do dono da imagem. Parte da imagem é a história da própria imagem. Em um certo estágio a imagem, creio eu, consiste apenas em borrões e movimentos indistintos. A partir do nascimento, senão antes, existe um fluxo constante de mensagens penetrando no organismo através dos sentidos. No começo podem ser apenas meras luzes e ruídos indistintos. À medida que a criança cresce, porém, ele gradativamente vão sendo distinguidos como pessoas e objetos. Ela começa a perceber a si mesma como um objeto no meio de um mundo de objetos. A imagem consciente tem assim seu princípio. Na infância o mundo é uma casa, talvez algumas ruas e um parque. Quando a criança cresce mais, sua imagem do mundo se expande. Ela se vê em uma cidade, um país, um planeta. Vê a si mesma em uma rede cada vez mais complexa de relações pessoais. Cada vez que uma nova mensagem chega a ela, é provável que sua imagem seja alterada por ela de alguma forma, e à medida que a imagem muda, seus padrões de comportamento de forma correspondente.
Precisamos distinguir cuidadosamente a imagem das mensagens que chegam a ela. As mensagens consistem em informações no sentido em que são experiências estruturadas. O significado de uma mensagem é a mudança que ela produz na imagem.
Quando uma mensagem atinge uma imagem pode acontecer uma de três coisas. Primeiro, a imagem pode permanecer indiferente. Se pensarmos na imagem como uma estrutura dispersa, semelhante a uma molécula, podemos imaginar que a mensagem passou direto sem bater em nada. Isto é o que acontece com a grande maioria das mensagens. Estou constantemente recebendo mensagens, por exemplo, dos meus olhos e ouvidos, enquanto estou sentado a minha mesa, mas essas mensagens são ignoradas por mim. Existe, por exemplo, um barulho de carpinteiros trabalhando. Eu sei, porém que um edifício está sendo construído nas redondezas e o fato de ouvir esse barulho não acrescenta nada a essa imagem. Na verdade, eu nem escuto o barulho a menos que me esforce para ouvi-lo, de tanto que me acostumei a ele. Quando o barulho para, porém, eu o percebo. Esta informação muda minha imagem do universo. Percebo que já são cinco horas e que é hora de ir para casa. A imagem despertou minha atenção, por assim dizer, para a minha posição no tempo, e eu fiz uma nova avaliação dessa posição. Este é o segundo efeito possível ou impacto que a mensagem exerce sobre a imagem. Pode mudar a imagem de uma forma regular e bem definida, que pode ser descrita como uma simples adição. Suponhamos, por exemplo, para voltar a um exemplo anterior, que eu consulte um atlas e descubra exatamente a relação entre Nyasaland e Tanganyika. Eu teria feito uma adição ao meu conhecimento ou à minha imagem; não terei, porém, feito nenhuma revisão fundamental nela. Eu ainda retrato o mundo quase como eu o retratava anteriormente. Alguma coisa que estava mais vaga antes tornou-se agora mais clara.
Existe, porém, um terceiro tipo de mudança da imagem que pode ser descrita como uma mudança revolucionária. Algumas vezes a mensagem atinge alguma espécie de núcleo ou estrutura de suporte da imagem, e a coisa toda muda radicalmente. Um exemplo espetacular dessa mudança é a conversão. Uma pessoa pode se achar muito correta e, de uma hora para outra, ouve um pregador que a convence de que na verdade aquela vida, com a qual ela estava antes muito satisfeita, é vazia e não tem nenhum valor. As palavras do pregador provocam uma reformulação radical da imagem que a pessoa tem de si mesma no mundo, e seu comportamento muda de modo correspondente. O psicólogo pode afirma, certamente, que essas mudanças são menores do que aparentam ser, que existe uma grande massa do inconsciente que não muda, e que as mudanças relativamente pequenas do comportamento, que geralmente se seguem à conversão intelectual, testemunham esse fato. Mesmo assim, o fenômeno de reorganização intelectual é importante e acontece a todos nós, e de maneiras muito menos espetaculares do que a conversão religiosa.
A natureza dramática e repentina dessas reorganizações decorre do fato de que nossa imagem é em si mesma resistente à mudança. Quando ela recebe mensagens que estão em conflito com ela, seu primeiro impulso é rejeitá-las como falsas. Suponhamos, por exemplo, que alguém nos revela algo que é inconsistente com nosso conceito de uma certa pessoa. Nossa primeira reação é rejeitar a informação fornecida como falsa. Quando continuamos a receber mensagens que contradizem o conceito original, começamos a ter dúvidas, até que um dia recebemos uma determinada mensagem que derruba de uma vez aquele conceito, obrigando-nos a revisá-lo completamente. A pessoa que tínhamos como amiga sincera pode ser agora vista como hipócrita e falsa.
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Talvez devêssemos adicionar um quarto impacto possível que as mensagens podem ter sobre a imagem. A imagem tem uma certa dimensão ou qualidade de certeza ou incerteza, probabilidade ou improbabilidade, clareza ou imprecisão. Nossa imagem do mundo não é uniformemente certa, uniformemente provável nem uniformemente clara. Os efeitos das mensagens não são limitados a adições ou reorganizações da imagem. Elas podem esclarecê-la, isto é, fazer que uma coisa tida anteriormente como menos certa torne-se mais certa, ou fazer alguma coisa vista vagamente ficar mais clara.
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A estrutura de conhecimento subjetivo ou imagem de qualquer indivíduo ou organização consiste não apenas de imagens de "fato" mas também de imagens de "valor". Devemos submeter o conceito de "fato" a um escrutínio cuidadoso ao longo de nosso estudo. Enquanto isso, porém, está claro que existe uma certa diferença entre a imagem que eu tenho de objetos físicos-- situados no espaço e tempo-- e os valores que eu atribuo a esses objetos ou aos eventos nos quais eles são envolvidos. É claro que existe uma certa diferença entre , digamos, minha imagem da Universidade de Stanford existente em um certo ponto do espaço e do tempo, e minha imagem do valor da Universidade de Stanford. ...
A imagem de valor é ligada à classificação das várias partes da imagem, de acordo com alguma escala de melhor e pior. Todos nós possuímos uma ou mais dessas escalas. É o que os economistas chamam de função de bem estar.Ela não se aplica a todo o universo. Por exemplo, no momento atual nós não consideramos Júpiter um planeta melhor do que Saturno. Nós construímos escalas de valor para medir aquelas partes do universo que se encontram mais perto de nós. Alé disso, nós mudamos essas escalas de valor em resposta às mensagens que recebemos, da mesma forma como mudamos a nossa imagem do mundo ao redor de nós. Certamente a maioria das pessoas possui não apenas uma mas várias escalas para propósitos diferentes. Por exemplo, posso dizer que A é melhor para mim do que B mas é pior para o país, ou que é melhor para o país mas pior para o mundo como um todo. A noção de hierarquia de escalas é muito importante para estudar o efeito das mensagens sobre as próprias escalas.
Uma das proposições mais importantes desta teoria é que as escalas de valores das pessoas e das organizações constituem os elementos mais importantes que determinam o efeito das mensagens recebidas por elas sobre suas imagens do mundo. Se uma mensagem não é percebida como boa ou ruim, ela terá pouco ou nenhum efeito sobre a imagem. Se for percebida como ruim ou hostil para a imagem sustentada, haverá resistência a sua aceitação. Geralmente essa resistência não é ilimitada. Uma mensagem repetida freqüentemente ou uma mensagem que vem com grande força ou autoridade é capaz de penetrar a resistência e alterar a imagem. ... Quando as resistências são muito fortes, podem ser necessárias mensagens muito fortes ou muitas repetições para penetrá-la e, quando afinal isso acontece, o efeito é um realinhamento ou reorganização de toda a estrutura do conhecimento.
Por outro lado, as mensagens favoráveis à imagem do mundo existente são recebidas facilmente e mesmo que elas acarretem pequenas modificações da estrutura cognitiva, não haverá nenhuma reorganização fundamental. Tais mensagens não terão impacto algum sobre a estrutura do conhecimento ou então o impacto será apenas uma adição ou acréscimo. Essas mensagens podem ter o efeito de aumentar a estabilidade, quer dizer, a resistência a mensagens desfavoráveis que a estrutura do conhecimento possui.
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Mesmo ao nível da simples--ou supostamente simples--percepção sensorial, estamos descobrindo cada vez mais que as próprias mensagens que nos chegam através dos sentidos são mediadas através de um sistema de valores. Não percebemos os dados brutos dos sentidos; eles são filtrados através de um processo elaborado de interpretação e aceitação. Quando o tamanho aparente de um objeto cresce na retina do olho, nós não interpretamos isso como aumento das suas dimensões e sim como movimento de aproximação. Na realidade, nós lidamos bem com o mundo porque consistentemente e persistentemente rejeitamos as evidências diretas dos nossos sentidos. A vara na água não está torta, o filme não é uma sucessão de fotos imóveis, e assim por diante.
O que isso significa é que para qualquer organismo individual ou organização, não existem essas coisas chamadas "fatos". Existem apenas mensagens filtradas através de um sistema de valores sujeito a mudanças. Esta proposição pode parecer surpreendente. Apesar disso, ela é inerente à visão das coisas que estou propondo. Ela não implica, no entanto, que a imagem do mundo que um indivíduo possui é uma coisa puramente privada nem que todo conhecimento é subjetivo, no sentido em que eu usei essa palavra. Parte de nossa imagem do mundo é a crença de que essa imagem é partilhada por outras pessoas como nós, que também fazem parte de nossa imagem do mundo.
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Resumindo, minha teoria poderia ser chamada uma teoria orgânica do conhecimento. Sua proposição mais fundamental é que conhecimento é aquilo que alguém ou algo conhece e que o conhecimento sem um conhecedor é um absurdo. Além disso, argumento que o crescimento do conhecimento é o crescimento de uma estrutura orgânica. Não estou sugerindo aqui que o conhecimento seja apenas um arranjo de circuitos neuronais ou células do cérebro, ou qualquer outra coisa do gênero. Na questão da relação entre a estrutura física e química de um organismo e sua estrutura cognitiva, estou predisposto a ser agnóstico. ... Quando eu digo que o conhecimento é uma estrutura orgânica, quero dizer que ele segue princípios de crescimento e desenvolvimento semelhantes àqueles com os quais estamos familiarizados em organizações e organismos complexos. Em todo organismo ou organização existem fatores tanto internos quanto externos que afetam o crescimento. O crescimento se processa através de uma espécie de metabolismo. Mesmo no caso das estruturas cognitivas, temos certas entradas e saídas de mensagens. No caso da estrutura cognitiva, porém, existem violações importantes das leis da conservação. A acumulação do conhecimento não é meramente a diferença entre mensagens recebidas e mensagens enviadas. Não é como um reservatório; é antes como uma organização que cresce através de um princípio ativo interno de organização, da mesma forma que o gene é um princípio ou entidade que organiza o crescimento das estruturas corporais. O gene, mesmo no sentido físico-químico, pode ser imaginado como um professor interno impondo sua própria forma e "vontade" à matéria informe ao seu redor. No crescimento das imagens, também, podemos supor modelos similares. O conhecimento desenvolve-se também por causa dos professores internos e das mensagens externas. Como todo bom professor sabe, o negócio de ensinar não consiste em penetrar as defesas dos alunos pela violência ou potência das mensagens do professor. Consiste, na verdade, em cooperação com o próprio professor interno do aluno, através da qual a imagem do aluno pode crescer em conformidade com aquela de seu professor externo. A existência de conhecimento público depende portanto de certas semelhanças básicas entre os seres humanos. É literalmente porque nós temos o mesmo "sangue", isto é, constituição genética, que somo capazes de nos comunicarmos uns com os outros. Não somos capazes de falar com formigas e abelhas; não conseguimos conversar com elas, mesmo que, de uma forma muito real, elas comuniquem para nós.

Um comentário:

Anônimo disse...

Achei seu blog Camila ^^

Beeeeeeeeeeeeeeeeeeijão da Bá